domingo, 5 de setembro de 2010

Um dia de cão ( O COMEÇO)

Essa coisa muito próxima de um conto é tenebrosa. E eu não entendo porque alguns enxergariam alguma comicidade no que vou contar. Afinal, cada ser humano sabe o que é triunfal e o que é catastrófico em sua vida.
E se eu quiser chorar? E se o motivo do meu choro for algo que, para você ou você ou você, é futil e banal?
Eu sei bem o que você vai pensar em seu momento jesuíta: "Tem gente morrendo de fome na África!".
Eu sei, eu sei.
"Tem gente que está presa numa cadeira de rodas!". Eu sei, eu sei. Mas, que porcaria de música é essa que cantam em uníssono para mim? Pior do que ser fútil é se sentir feliz com a desgraça alheia.
Particularmente, eu não entendo como a miséria da África ou uma cadeira de rodas deveriam ser o mote da meu contentamento.
Já diria o sábio e renomado poeta: "Cada um no seu quadrado". Eu sofro pelos meus problemas, você sofre pelos seus e a amizade continua.
Eu não tive a graça salvadora de nascer de uma família rica, mas, ainda assim eu tive um dia a graça salvadora de possuir um autómovel. Sim, graça salvadora. Porque eu fui por alguns anos salvo de experiências torturantes como a que estou prestes a relatar.
Esta é a minha desgraça, a minha catástrofe: Não ter mais o meu meio individual ( enquanto, assim o quisesse) e salvaguardante de transporte. E, tal qual uma criança africana adoraria uma feijoada, eu, no direito e exercício do meu ser individual, adorava ter um carro.
Uma pessoa que tem insônia precisa de um carro. Explico: Há dois meses moro na ensolarada e arritmada Maceió-AL e é incrível como, não importa quanto um lugar seja modesto geograficamente (leia-se pequeno, quase um ovo) hoje em dia, há um trânsito infernal.
Por um acaso do destino ( leia-se castigo divino antecipado pelas idéias divulgadas neste texto) moro num bairro afastado, o que não é tão relevante na minha condição, visto que quando uma pessoa usa o sistema público de transpostes, tudo é afastado e distante.
Carrego comigo a maldita herança genética da insônia e da ansiedade e portanto, sou melhor em tudo à noite. Mas, há algo de especial e cósmico nas noites de domingo para mim. Algo que faz com que me sinta um rato de laboratório louco por atividade e cheio de energia que ganha uma rodinha giratória nova. Eu não durmo nas noites de domingo. E nas manhãs de segunda, eu preciso acordar às 5hs da manhã para pegar o instrumento móvel e metálico de tortura chinesa que chamamos ônibus às 6hs da manhã. E isso, com o intuito de chegar ao trabalho às 7hs30min.
Nesta primeira segunda-feira de minha nova estabelecida rotina, como de costume, não havia dormido. De maneira que às 6hs em ponto estava perfeitamente limpo, vestido, estiloso e cheiroso no Instituto de alistamento sadomasoquista voluntário que chamamos de ponto de ônibus.

A primeira vista, percebi que o instrumento móvel de tortura se aproximava com uma incomun lentidão e um aparente esforço gravitacional. Com a diminuição dos metros, percebi que o esforço tinha a ver com o peso. Eu não faço idéia de quantas assentos aquele monstro enferrujado tem, muito menos imagino o número lícito de mártires que ele pode transportar de pé, no seu ato cruel.

Mas, imagino que esse, em particular, trazia entre 75 e 90 encarnados com uma dívida cármica equivalente a de Barrabás.

Esperei paciente e resignadamente no fim do amontoado que se degladiava para iniciar o arrebatamento macabro. 15 minutos depois, entrei... 30 minutos depois, passei pela catraca. ( Sim, porque além de tudo, você ainda é obrigado a pagar).

Interessante que depois de embarcado, a aparente dificuldade de locomoção e o peso pareciam desaparecer. O monstro corria desordenadamente sem qualquer suavização de atrito como um elefante correndo assustado na savana, enquanto eu, tal qual um paciente com o mal de parkinson, tremulamente estendia meu braço esquerdo para a barra de apoio acima.

Uma vez realizada a tarefa de apoiar-me na barra com meu braço mais fraco, a tarefa mais difícil e cruel era a de permanecer como uma estátua por 1 hora e ao mesmo tempo, ser uma estátua conveniente que dá passagem aos transeuntes e que assume feições de simpatia mesmo diante das mais desconfortáveis encoxadas de completos desconhecidos, nem sempre tão simpáticos.

Num momento de fraqueza, pensei em alternar o peso e a pressão com o meu braço direito. Foi quando percebi que como num num mar infernal, abaixo e rente ao meu cotovelo havia seios de várias faces, ossos nasais, bochechas e que qualquer tentativa de movimento seria o mesmo que uma tentativa de lesão corporal grave.

Permaneci com o meu braço esquerdo erguido, embora já não mais o sentisse. Próxima parada, conformistas alegres entraram. Não aparentavam qualquer cansaço e, pelo contrário, aparentavam uma genialidade e maestria em seus movimentos quase que cirúrgicos ao perpassarem pelos outros miseráveis e chegar aos seus lugares que, mesmo que as fizesse ficar de pé, pareciam confortabilíssimos.

De repente, como se o próprio Senhor das trevas quisesse brincar com meus sentimentos e me torturar ainda mais, desencadeou-se uma série de eventos sepulcrais e horríveis.

As recém-chegadas ao vale da morte, iniciavam uma espécie de confraternização satânica. Conheciam-se! Conversavam com seus sotaques de quem fora criado na convicência de 4 primatas sem contato social e nenhuma TV ou rádio, trocavam confidências em público, esperavam em comunhão a chegada do bebê de uma delas; torturavam a minha visão com o comércio clandestino do que chamavam estranhamente de "as confecção".

E num requinte de cruendade do Senhor daquele lugar, a cada palavra pronunciada, emitiam sons estridentes e agudos, com níveis de decibéis imorais muito parecidos com risos bruxísticos.

A essa altura, o óleo corporal pós-banho que usava havia-se fundido com o suor e a poeira e tornado-se uma mistura cremosa e espessa que escorria por minhas costas.

Foi quando, num monento cataclísmico, os piores acessórios que os agentes daquele de quem não falamos o nome carregavam começaram a ser usados. Celulares com qualidade visual e sonora incompreensíveis por estarem em suas posses.

Começou o bizarro concerto de reggae, forró e o som da banda montada pelos próprios cavaleiros do apoCALIPSE, daí o trocadilho com o nome: Calypso.

"Acelerou, acelerou, acelerou". E quando já havia espaço suficiente para movimento corporal, eis que em uma curva, meu corpo foi usado como uma marionete pelo CEO do inferno e eu fui momentaneamente possuído pelo espírito de Besouro e, sem controle do meu próprio corpo, virei como num golpe de rasteira de uma tribo africana e golpeei a panturrilha de um ser estranho, aparentemente feminino e ouvi, naquele momento da minha vida, coisas que eu sequer imaginava que existiam, com uma articulação que apenas um cavalo ofegante conseguiria reproduzir.

O volume em que disferia seu desabafo era tanto que meus pedidos de desculpas pareciam o sussuro da fada sininho.

Um ou dois... ou mil quarteirões depois, desci do instrumento mais cruel e macabro já inventado para torturar os homo sapiens e tive a sensação recompensadora de ar entrando no meu corpo.

Mas, eu tinha apenas chegado ao meu destino e o dia, tinha apenas começado.

6 comentários:

Unknown disse...

É impressionante a palavras que usa pra descrever esta situação, é uma dramatização poetica e intelectual. Mais, me diverti muito na verdade lenco esta tua aventura, imaginei você até em cima de elefante na savana... Risos

Abraços amigo, vou lê outros post seu depois. Boa sorte ai neste mundo de meu Deus!

ϟ Luan Côrtes disse...

É impossível evitar a comicidade em um texto como este... Embora a situação seja tétrica, o texto aprouve-me e, malgrado algumas minúsculas incoerências e impropriedades, o texto é ótimo.
Espero ler os próximos infortúnios desse dia fatídico, já que sabemos nunca virem desacompanhados.

Nea Rodrigues disse...

Ao ler esse texto, senti-me como se o estivesse ouvindo contar a historia, e, claro, eu fiquei com os olhos lacrimejando de tanto rir!! Dramatico e exagerado, como sempre, inteligentemente consegue escolher as melhores palavras para descrever corriqueiras situa'coes e tranform'a-las em comicas e interessantes aventuras!! Esse meu amigo eh um genio!!! Saudades de ouvi-lo pessoalmente e ver tb as expressoes faciais impagaveis q vc faz!!rsrs Amoooooo-teeeeee

Maria do Carmo Vieira disse...

Alex, meu filho, isso é quase um Augusto dos Anjos. Que inferno foi esse? Eu conheço bem essa realidade descrita por vc, e, ainda hj, tive que suportar o papo de uma mal educada com o motorista sobre política. Sinto muito por vc, mas não desanime, vc vai ter um carro novamente.

Gostei do blog, viu? Escreva, vou acessar sempre. Bjus!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Is it too late to apologize? Hope it´s not... Miss you CDC!